Joselito X Etxebarri by Miguel Azevedo Peres

A manhã em San Sebastián amanheceu com o rescaldo de uma noite animada. Tomei um omeoprazol para tentar remediar os excessos da noite anterior e fui ter com o resto da comitiva. Precisava de forrar o estômago e pedi um croissant, um café e uns churros. Fui advertido do erro que cometia. Em dia de etxebarri, não se deve sequer tomar pequeno almoço, o apetite e todo e qualquer espaço do estômago deve ser reservado para o templo.

Heresia cometida, enfiámos as malas no carro alugado e seguimos rumo a Atxondo. À medida que nos afastávamos da litorânea San Sebastián, a paisagem transformava-se. Campos verdes e montanhas distantes começaram a moldar o horizonte. Pelo caminho todos iam contando histórias das suas visitas anteriores, havia algo no ar, uma mistura de expectativa e aquele tipo de excitação de voltar a um lugar que se ama. A gasolina estava a chegar ao fim e precisávamos abastecer. Estávamos cada vez mais perto e comecei a ficar preocupado. Há anos que falava em vir ao Etxebarri, mas os planos saíram sempre furados. Tinha medo que com uma expectativa tão alta caísse redondo na desilusão. Felizmente a bomba apareceu poucos km antes do carro apear.

Estávamos a chegar a Axpe e os meus companheiros avisaram-me que agora devia tomar atenção à estrada em frente. Depois da curva no final da estrada estreita, começava a surgir uma montanha que ia crescendo em tamanho conforme nos aproximávamos. Estacionámos e fomos rumo à porta do piso térreo onde, aos domingos ,mesmo sem reserva, se pode provar um pedaço de etxebarri num estilo bem relaxado, próprio do bar de aldeia que um dia foi neste mesmo lugar. Pintxos cerveja e vinho, senhoras a jogar às cartas, a gente de San Juan, amigos e família

Subindo as escadas fomos dar a uma sala de paredes brancas, lareira acesa, pimientos choriceros numa parede e uma garrafeira do lado oposto . Fomos recebidos por esse ser brilhante que é o Mohamed, sommelier e anfitrião do Assador extebarri e por José Gomez, um verdadeiro príncipe do porco, pertencente à 6a geração da linhagem Joselito.

Enquanto o cortador ia trinchando as mais finas fatias de presunto Joselito, foi-nos oferecido um caldo de carne para aquecer as mãos, o coração e o estômago. Um caldinho a ferver, leve na textura, delicado mas intenso no sabor, perfeito para abrir o apetite e restaurar as forças. Já de Champanhe numa mão e com a outra ensebada da delicada gordura do presunto, foram chegando os restantes convidados, que vinham dos 4 cantos do mundo para esta celebração da cultura do porco ibérico.

Momento de silêncio. Bittor Arginzoniz entra na sala, sorridente e silencioso. José fez um pequeno discurso explicando esta parceria que unia a Joselito e o Etxebarri em torno do porco e em particular desta época especial em que os enchidos e os presuntos começam a ser curados. Falou-nos de algo que temos discutido várias vezes no pigmeu, que é como também o porco é um ingrediente de temporada. A montanheira vai do outono ao início da primavera, é nesta altura que o porco, comendo a bolota e caminhando pelo montado, se enriquece. O resto do ano não é, tradicionalmente, altura de carne fresca, mas sim dos enchidos, presuntos, pernis e outras peças que foram curados nesta altura do ano.

Chegou a hora de provar o chourição que Bittor começou a desenvolver em 1995 e que já teve várias fases ao longo da sua vida. Já foi curado com fumo, que hoje em dia já não leva. Já teve pimiento choricero de vários produtores, que hoje é feito por Bittor. Já foi feito na fábrica da Joselito e hoje em dia é feito em Axpe. A única coisa que nunca mudou foi a decisão de que seria feito com as melhores carnes Joselito ( presa e secretos) e que levaria pimiento choricero. O Chourição de Bittor é differente de todos os que já provei, o pimiento choricero faz com que o chorição seja carnudo , levemente doce e sem aquela sensação que muitos Chourições deixam do excesso de tempero. A gordura está presente mas bem integrada e mais discreta do que é costume. Este que provamos tem menos cura e era portanto mais suave e untuoso na textura, fiquei com curiosidade de provar um mais antigo e perceber como evoluía .

Fomos para a mesa, onde começaram por servir pão e água. Logo arrancamos com um champanhe e chegou uma mozarela feita em casa com leite das bufalas que Bittor cria em sua casa.

Seguimos com um murro na mesa, um caviar ligeiramente fumado, servido em cima de uma banha de porco cremosa. A banha era feita da gordura das costeletas de porco que Bittor matura. Mas a cremosidade que conseguiram é um mistério para mim. Caviar é bom, mas é muitas vezes nestes restaurantes um desperdício, não traz nada de bom, nada de novo, é uma mera ostentação, abrir uma lata despejar em cima de algo, e pum… Aqui a história era outra, o fumo ligeiro intensificava o caviar e a banha por outro lado diluía essa intensidade e a sua textura cremosa permitia que os sabores se demorassem na língua.
Ao mesmo tempo foi servida uma manteiga de cabra que fui comendo quase como um queijo ao longo da refeição.

A gamba Roja foi a prova da excelência de quem cozinha , um fumo muito suave lá no fundo e um ponto com nunca vi os sucos da cabeça cremosos como quase não tivessem água e o corpo firme e sedoso. Quem me dera cozinhar assim. O produto era excelente mas os cozinheiros superlativos.

Mais um de cair o queixo, seguimos com ouriço, aberto ainda com a carne agarrada à casca mas cheio de um creme de ouriço, que me obrigou a utilizar o dedo para que não ficasse nem um restinho na casca. Não fossem os espinhos do ouriço deveria ser lambido.

Marcham uns pulpitos, os mais pequenos que alguma vez vi, óleo de pimiento choricero e tupinambur. Seguidos por um pepino do mar com ervilha lágrima. Rapidamente regressámos ao registo erótico, que vivemos em pratos anteriores com um creme de batata bem aveludado, uma gema suavemente cozinhada na grelha e umas lascas de trufa branca....

Momento especial com a Txistorra ou tartar de chouriço que não é nada mais nada menos, que o aparelho fresco com que se fazem os chourições levemente cozinhado na brasa. Uma recordação daquele momento em que na altura de fazer os enchidos, se grelha um pouco do aparelho para provar o resultado antes de encher a tripa. Se o chourição que provámos antes era bom este prato era ainda melhor. De todas as harmonizações com vinhos, que foram estrondosas, esta encheu-me o coração. Foi um momento especial o vinho parecia saber à txistorra e a txistorra ao vinho, mas nenhum dos dois era só isso e juntos eram um só momento de deleite. O vinho era Domaine JL Chave , L'Hermitage Tinto 2019. Por curiosidade fui ler as notas de prova e ora vejamos se não faz todo sentido : Immensely complex on the nose, red fruits, dark chocolate, cassis, toasted spices, cured meat, fresh cracked pepper, and turned earth light up the senses. The palate is concentrated, deeply complex, and full of plush red fruits. The elegance of this wine is unmatched with firm acidity, fine tannins, and a finish that goes on for minutes. (link para a fonte)

Depois de perder a cabeça várias vezes até este momento , pensei que não havia muito mais para aprender. Mas a festa não acabou por aqui. Vieram ainda molejas panadas e grelhadas na brasa , as mais tenras alcachofras da minha vida com trufa, kokotxas com uma kale crocante y pil pil e angulas cozinhadas levemente com a gordura das costeletas de porco. As Angulas que toda gente ao redor adorou deixaram-me desconfortável , se por um lado estavam inteiras, num ponto e texturas perfeitas a cada mordida o gosto de tabaco ou nicotina incomodava-me. Sendo fumador aquilo não me fez muito sentido que isso me incomodasse, mas talvez tenha sido por isso mesmo que eu sentisse isso de forma mais acutilante.

Chegámos ao que mais esperava! Ao longo da refeição questionávamo-nos se teríamos direito à txuleta de porco e ela chegou! José Gomez diz que foi por pouco, Bittor não queria servir a txuleta. O ideal seria que ela tivesse 2 meses de maturação e esta apenas tinha 1. Bom, tenho a dizer que costeletas de bom porco já comi muitas , com um mês de maturação poucas, e cozinhadas com a excelência desta nenhuma. A carne rica, cozinhada num ponto rosa de ponta a ponta, mesmo nos entremeios da gordura, a gordura cozinhada ainda com mordida mas que derretia na boca, cortada em tiras muito finas, jugosa mas seca sem uma pinta de sangue no prato. Se isto não é perfeição então terei que voltar para provar a de 2 meses. Por mim provaria também com 3 e 4 meses mas José gomez fez questão de explicar que ai já não é txuleta é queijo . A txuleta deve saber a carne e a partir dos 2 meses a maturação evolui com aromas mais funky e aromas de queijo, não desrespeitando o nosso anfitrião quero provar essas também !

A acompanhar a txuleta de porco veio uma salada de alface e cebola bem temperada e uma txuleta de vaca, esta mais famosa no mundo como o standart mundial para qualidade de carne e modo de confeção irrepreensível.

A esta altura já estava bastante cheio, quase não tinha vontade de ir às sobremesas, até porque depois de toda a magnificência desta refeição achava que já não haveriam muitas coisas que me pudessem surpreender.

Pimbas ! Murro na mesa! O gelado de leite ligeiramente fumado com calda de beterraba. Combinação explosiva, o fumo a gordura do leite, a textura do gelado a complexidade da beterraba, a textura do gelado novamente. Tudo aparentemente muito simples...
Chegaram a torta de queso e um foundant de chocolate bem pecaminosos. Como Deus existe e está na cozinha do Etxebarri, não ficámos por aqui terminámos com uma tarte tatin de maçã, onde a massa folhada era feita com banha em vez de manteiga. Eu que não tinha vontade de comer doces passei-me, queria comer mais e mais e mais. Que delicia de tarte! Bittor perdoa-me mas vou ter que tentar imitar esta massa no pigmeu!

Antes de sairmos da mesa, tentar partilhar algo que é difícil de explicar. Algo que nunca havia sentido em nenhum restaurante de fine dining, ou nunca desta maneira. Eu senti-me em casa, eu senti-me verdadeiramente confortável. Talvez seja por a comida chegar à mesa pelas mãos de mulheres daquela terra, talvez por estas senhoras já não serem jovens, talvez pelo carinho com que nos alimentam. Talvez seja esse sentimento maternal, talvez seja a ausência de extensas explicações, talvez seja da comida, talvez do fumo ou até do vinho...

A tarde entardeceu, beberam-se garrafas e ouviram-se histórias, equilibrou-se o dia com um pouco de água, fumaram-se cigarros e deram-se concelhos sentimentais. O tempo ali passava devagar, mas já tinham passado 8 horas desde a nossa entrada e tivemos que abandonar aquele lugar onde fomos tão felizes. Na despedida abraços e um puro sentido de gratidão a toda a equipa que nos recebeu. Antes de sairmos combinaram-se já vários regressos aquela nossa nova casa.


Para quem tiver curiosidade sobre esta refeição o livro Joselito X Etxebarri , tem algumas das receitas deste almoço e conta-nos a história desta parceria. Deixo o link da amazon.